terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Obama por Mia Couto

Hoje, obviamente, a notícia é a esperançosa tomada de posse de Barack Obama; podem seguir a noticía na imprensa mundial, seja Público, Expresso, Folha, Rádio Nacional de Angola, Notícias (de Maputo, Moçambique) ou O Jornal de Fall River (Massachusetts, EUA). Vejam o que escreveu, há uns meses, o genial escritor moçambicano Mia Couto. O texto está tirado deste blogue; há uma versão em espanhol neste outro. Também podem ler este artigo do jornal espanhol Público acerca de Nilo Peçanha, primeiro presidente preto do Brasil.

E se Obama fosse africano? Por Mia Couto

Os africanos rejubilaram com a vitória de Obama. Eu fui um deles. Depois de uma noite em claro, na irrealidade da penumbra da madrugada, as lágrimas corriam-me quando ele pronunciou o discurso de vencedor. Nesse momento, eu era também um vencedor. A mesma felicidade me atravessara quando Nelson Mandela foi libertado e o novo estadista sul-africano consolidava um caminho de dignificação de África.
Na noite de 5 de Novembro, o novo presidente norte-americano não era apenas um homem que falava. Era a sufocada voz da esperança que se reerguia, liberta, dentro de nós. Meu coração tinha votado, mesmo sem permissão: habituado a pedir pouco, eu festejava uma vitória sem dimensões. Ao sair à rua, a minha cidade se havia deslocado para Chicago, negros e brancos respirando comungando de uma mesma surpresa feliz. Porque a vitória de Obama não foi a de uma raça sobre outra: sem a participação massiva dos americanos de todas as raças (incluindo a da maioria branca) os Estados Unidos da América não nos entregariam motivo para festejarmos.
Nos dias seguintes, fui colhendo as reacções eufóricas dos mais diversos recantos do nosso continente. Pessoas anónimas, cidadãos comuns querem testemunhar a sua felicidade. Ao mesmo tempo fui tomando nota, com algumas reservas, das mensagens solidárias de dirigentes africanos. Quase todos chamavam Obama de "nosso irmão". E pensei: estarão todos esses dirigentes sendo sinceros? Será Barack Obama familiar de tanta gente politicamente tão diversa? Tenho dúvidas. Na pressa de ver preconceitos somente nos outros, não somos capazes de ver os nossos próprios racismos e xenofobias. Na pressa de condenar o Ocidente, esquecemo-nos de aceitar as lições que nos chegam desse outro lado do mundo.
Foi então que me chegou às mãos um texto de um escritor camaronês, Patrice Nganang, intitulado: "E se Obama fosse camaronês?". As questões que o meu colega dos Camarões levantava sugeriram-me perguntas diversas, formuladas agora em redor da seguinte hipótese: e se Obama fosse africano e concorresse à presidência num país africano? São estas perguntas que gostaria de explorar neste texto.
E se Obama fosse africano e candidato a uma presidência africana?
1. Se Obama fosse africano, um seu concorrente (um qualquer George Bush das Áfricas) inventaria mudanças na Constituição para prolongar o seu mandato para além do previsto. E o nosso Obama teria que esperar mais uns anos para voltar a candidatar-se. A espera poderia ser longa, se tomarmos em conta a permanência de um mesmo presidente no poder em África. Uns 41 anos no Gabão, 39 na Líbia, 28 no Zimbabwe, 28 na Guiné Equatorial, 28 em Angola, 27 no Egipto, 26 nos Camarões. E por aí fora, perfazendo uma quinzena de presidentes que governam há mais de 20 anos consecutivos no continente. Mugabe terá 90 anos quando terminar o mandato para o qual se impôs acima do veredicto popular.
2. Se Obama fosse africano, o mais provável era que, sendo um candidato do partido da oposição, não teria espaço para fazer campanha. Far-lhe-iam como, por exemplo, no Zimbabwe ou nos Camarões: seria agredido fisicamente, seria preso consecutivamente, ser-lhe-ia retirado o passaporte. Os Bushs de África não toleram opositores, não toleram a democracia.
3. Se Obama fosse africano, não seria sequer elegível em grande parte dos países porque as elites no poder inventaram leis restritivas que fecham as portas da presidência a filhos de estrangeiros e a descendentes de imigrantes. O nacionalista zambiano Kenneth Kaunda está sendo questionado, no seu próprio país, como filho de malawianos. Convenientemente "descobriram" que o homem que conduziu a Zâmbia à independência e governou por mais de 25 anos era, afinal, filho de malawianos e durante todo esse tempo tinha governado 'ilegalmente". Preso por alegadas intenções golpistas, o nosso Kenneth Kaunda (que dá nome a uma das mais nobres avenidas de Maputo) será interdito de fazer política e assim, o regime vigente, se verá livre de um opositor.
4. Sejamos claros: Obama é negro nos Estados Unidos. Em África ele é mulato. Se Obama fosse africano, veria a sua raça atirada contra o seu próprio rosto. Não que a cor da pele fosse importante para os povos que esperam ver nos seus líderes competência e trabalho sério. Mas as elites predadoras fariam campanha contra alguém que designariam por um "não autêntico africano". O mesmo irmão negro que hoje é saudado como novo Presidente americano seria vilipendiado em casa como sendo representante dos "outros", dos de outra raça, de outra bandeira (ou de nenhuma bandeira?).
5. Se fosse africano, o nosso "irmão" teria que dar muita explicação aos moralistas de serviço quando pensasse em incluir no discurso de agradecimento o apoio que recebeu dos homossexuais. Pecado mortal para os advogados da chamada "pureza africana". Para estes moralistas –tantas vezes no poder, tantas vezes com poder– a homossexualidade é um inaceitável vício mortal que é exterior a África e aos africanos.
6. Se ganhasse as eleições, Obama teria provavelmente que sentar-se à mesa de negociações e partilhar o poder com o derrotado, num processo negocial degradante que mostra que, em certos países africanos, o perdedor pode negociar aquilo que parece sagrado – a vontade do povo expressa nos votos. Nesta altura, estaria Barack Obama sentado numa mesa com um qualquer Bush em infinitas rondas negociais com mediadores africanos que nos ensinam que nos devemos contentar com as migalhas dos processos eleitorais que não correm a favor dos ditadores.

Inconclusivas conclusões
Fique claro: existem excepções neste quadro generalista. Sabemos todos de que excepções estamos falando e nós mesmos moçambicanos, fomos capazes de construir uma dessas condições à parte.
Fique igualmente claro: todos estes entraves a um Obama africano não seriam impostos pelo povo, mas pelos donos do poder, por elites que fazem da governação fonte de enriquecimento sem escrúpulos.
A verdade é que Obama não é africano. A verdade é que os africanos – s pessoas simples e os trabalhadores anónimos– festejaram com toda a alma a vitória americana de Obama. Mas não creio que os ditadores e corruptos de África tenham o direito de se fazerem convidados para esta festa.
Porque a alegria que milhões de africanos experimentaram no dia 5 de Novembro nascia de eles investirem em Obama exactamente o oposto daquilo que conheciam da sua experiência com os seus próprios dirigentes. Por muito que nos custe admitir, apenas uma minoria de estados africanos conhecem ou conheceram dirigentes preocupados com o bem público.
No mesmo dia em que Obama confirmava a condição de vencedor, os noticiários internacionais abarrotavam de notícias terríveis sobre África. No mesmo dia da vitória da maioria norte-americana, África continuava sendo derrotada por guerras, má gestão, ambição desmesurada de políticos gananciosos. Depois de terem morto a democracia, esses políticos estão matando a própria política. Resta a guerra, em alguns casos. Outros, a desistência e o cinismo.
Só há um modo verdadeiro de celebrar Obama nos países africanos: é lutar para que mais bandeiras de esperança possam nascer aqui, no nosso continente. É lutar para que Obamas africanos possam também vencer. E nós, africanos de todas as etnias e raças, vencermos com esses Obamas e celebrarmos em nossa casa aquilo que agora festejamos em casa alheia.

4 comentários:

Departamento de Português disse...

O que me choca em toda esta euforia acerca da eleição do Obama é que muito poucos estão a ver para além do preconceito da pele. Serão as ideias de Barack tão boas como para que todos estejamos a depositar nele todas as nossas expectativas de mudança? É preto, sim, e apenas por isso mudarão os tempos? Clinton também era democrata, foi eleito depois de anos e anos de republicanos no poder, terá sido tanta a esperança posta naquele homem? Não estaremos todos a ser um pouco racistas nesta situação?
Eu quero acreditar que a política social de Obama superará em muito a política bélico-economicista de Bush. Quero acreditar que muitas guerras se esgotarão em si mesmas sem um governo que as alimente. Mas nada disso virá por Obama ser mulato, virá por Obama ser Obama.

Excelente texto do Mia Couto, muito obrigada Chema, por mo dares a conhecer.

Susana

Departamento de Português disse...

Mmmmm. Cara Susana, não concordo exactamente. As coisas vão mudar por entrar um novo governo, mas o verdadeiramente importante é que um preto (embora de mãe branca) vá ser presidente de EUA. Que uma mulher seja agora ministra (ou directora de uma Escola de Línguas) não é relevante, mas há quarenta anos tivesse sido. Obama será julgado pelo que vai fazer, pelas políticas em âmbitos tão diferenciados como o comércio interno e as relaões com a ASEAN, a saúde pública e o novo governo das Nações Unidas, mas há um facto único e fundamental: será o primeiro presidente preto, de um país onde a escravatura e as leis racistas não são tão longínquas, se falarmos em termos históricos. Ainda por cima, é preto e liberal. Teria sido muito mais fácil se tivesse sido conservador, pois quem não pensou alguma vez que Colin Powell seria o primeiro presidente preto daquele país? Ou (deuses dos céus!) Condoleezza Rice? Esta tinha tudo a favor: preta, mulher, ultra-conservadora. Pois não, não foram eles. E qual a razão de ser tão importante EUA e não o Brasil? Fácil: eles são o império. A clivagem aqui é a cor da pele (sim) e não tanto o jogo liberal-conservador, que está mudar rapidíssimamente.

Chema DG

Departamento de Português disse...

Percebo exactamente o que estás a dizer, eu também penso que a vitória de Obama abre um precedente muito interessante e acredito piamente que é um momento histórico para o mundo (e não apenas para os EUA). No entanto, esta abertura de precedente continua a parecer-me profundamente racista, muitos votaram Obama não pelas suas capacidades e sim pela sua cor de pele, e a isso eu chamo racismo.

Em Portugal nunca uma mulher ganhou umas eleições para Presidente da República (ainda que Maria de Lourdes Pintassilgo o tenha tentado em 86), espero que a primeira que o consiga chegue lá por ideais e capacidades e não pelo seu género. Era apenas esse o ponto que eu queria deixar claro.

Quero acreditar que a Hillary não ganhou porque os democratas americanos têm noção de que a impressionante inteligência e capacidade de manipulação que lhe são características podem sempre descambar em faltas de escrúpulos e não apenas porque ela é uma mulher.

Susana

Departamento de Português disse...

Qual a diferença entre Obama e Jesse Jackon? Jesse queria ser o presidente dos pretos, Barack dos pretos e dos brancos. Qual a diferença entre Obama e Condy? A ideologia.
A primeira mulher PR de Portugal (efectivamente Pintassilgo já foi PM) não será eleita pelo sexo, mas por outras razões (partido, ideologia, sei lá) por uma única razão: as mulheres já alcançaram o poder. Hoje, ninguém sofre arrepios por ver uma mulher como cabeça de seja lá o que for.

Chema DG