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sexta-feira, 15 de outubro de 2010
sexta-feira, 1 de outubro de 2010
O livro do mês
O OUTRO PÉ DA SEREIA - MIA COUTO
“A viagem não começa quando se percorrem as distâncias, mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores.”
Mia Couto
O romance começa com o enterro de uma pequena estrela num descampado chamado Antigamente. O pastor Madzero Zero e sua mulher Mwadia procuram o advinho Lázaro Vivo e pedem permissão para entrar na floresta e enterrar a estrela. Na beira do rio, encontram uma estátua de Nossa Senhora sem um pé, um esqueleto e um baú com documentos antigos. O marco incial para o início de duas ousadas travessias, traçadas pelo sincretismo e pelos contextos históricos, políticos e sociais que marcaram Moçambique desde a origem do colonialismo português até 2002, dez anos após o término da guerra civil que sangrou a nação durante dezasseis anos.
A imagem de Nossa Senhora com o pé cortado se divide em dois tempos: Na histórica incursão do jesuíta português D. Gonçalo da Silveira que trouxe a imagem benzida pelo papa para a sua introdução na corte do Império de Monomotapa em 1560 às margens do rio Zambeze, e, em 2002, no retorno de Mwadia a Vila Longe com a missão de introduzir a imagem num lugar sagrado. Mwadia irá se deparar com suas reminiscências e medos, distante das consentidas impossibilidades de Antigamente, e será o elo entre as duas travessias que se unem com a imagem de Nossa Senhora e a necessidade de desvendar as sombras.
“Receio de que os seus já não lhe pertencessem, e que a velha casa estivesse morta.”
Todos os personagens são riquíssimos, construções preciosas do início de processo de colonização e da sociedade de Moçambique em 2002, independente desde 1975. A relação entre os portugueses, os indianos e os negros é revelada nas travessias, as etnias são marcadas, como os rios que deságuam num oceano que, sem margens à vista, é como uma náu à beira do abismo descrita pelo autor.
A chegada dos estrangeiros (afro-americanos) é aguardada com ansiedade, representa uma fonte de renda para a desolada cidade entregue ao passado. A comunidade encontra-se para forjar uma memória sobre a escravidão, já relegada ao esquecimento (é necessário esquecer para sobreviver) até pelas contradições que traz em sua própria constituição, como a captura e venda de escravos realizada pelos próprios negros. Como o escravo Xilundo que foi vendido pelo próprio pai Baba Inhamoyo, proprietário e negociantes de escravos: “No processo de ser escravo ele aprenderia a escravizar os outros.”
Os afro-americanos também precisam forjar uma presença para garantirem a sobrevivência com contas superfaturadas para ONGS que alimentam a pobreza e a autocomiseração de povos rendidos à caridade.
A lucidez das falas do barbeiro Arcanjo Mistura, guardião do espírito revolucionário, condenado a guardar seu idealismo numa fortaleza sem muros, contrapõe-se com a visão do empresário Casuarino, com a passividade do negro Zeca Matambira, funcionário do desativado correio, que teve de abandonar a carreira de boxeador porque não conseguia bater em brancos ou mulatos, e com a morte em vida do goês Jesustino Rodrigues que de tempos em tempos troca de nome em busca de identidade.
As alienações e os esquecimentos são lidos nas palavras que secaram em Zero Madzero ou na canoa que se liberta da margem do tempo e ganha o rio na lucidez ou no delírio de Mwadia. Nos retratos da sociedade que se erguem na parede dos ausentes no interior da alma da protagonista.
Mia Coutro traz à tona a origem poética da língua portuguesa, a beleza e o alcance das metáforas bem empregadas, a reflexão da história que corre como uma rio rumo aos oceanos e a necessidade de reconstruir os pés que representem a realidade das sociedades.
O final do romance é excepcional. Dá ao leitor a dimensão ampliada de tudo o que lera nos capítulos anteriores. Versos são extraídos da prosa e são vestígios para a conclusão. Um toque de mestre que transforma o livro numa canoa que no dizer da protagonista Mwadia é o que faltava em sua vida.
“Um livro é uma canoa. Este era o barco que lhe faltava em Antigamente. Tivesse livros e ela faria a travessia para o outro lado do mundo, para o outro lado de si mesma.”
A imagem de Nossa Senhora, ou Nzuzu, ou Kianda, desliza nos cursos das travessias. Seus pés são Mwadia que une e sustenta a travessia dos sonhos e histórias. Existem crenças que não precisam de alicerces em solo firme, são como água, ar, vento e se equilibram no ventre das palavras e dos silêncios. Quando expostas ao mundo trazem à tona o brilho das pequenas estrelas que precisam de um firmamento próprio para crescerem e iluminarem realidades.
“A viagem termina quando encerramos as nossas fronteiras interiores, Regressamos a nós mesmos, não a um lugar.”
Helena Sut
Publicado no Recanto das Letras em 23/06/2006
“A viagem não começa quando se percorrem as distâncias, mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores.”
Mia Couto
O romance começa com o enterro de uma pequena estrela num descampado chamado Antigamente. O pastor Madzero Zero e sua mulher Mwadia procuram o advinho Lázaro Vivo e pedem permissão para entrar na floresta e enterrar a estrela. Na beira do rio, encontram uma estátua de Nossa Senhora sem um pé, um esqueleto e um baú com documentos antigos. O marco incial para o início de duas ousadas travessias, traçadas pelo sincretismo e pelos contextos históricos, políticos e sociais que marcaram Moçambique desde a origem do colonialismo português até 2002, dez anos após o término da guerra civil que sangrou a nação durante dezasseis anos.
A imagem de Nossa Senhora com o pé cortado se divide em dois tempos: Na histórica incursão do jesuíta português D. Gonçalo da Silveira que trouxe a imagem benzida pelo papa para a sua introdução na corte do Império de Monomotapa em 1560 às margens do rio Zambeze, e, em 2002, no retorno de Mwadia a Vila Longe com a missão de introduzir a imagem num lugar sagrado. Mwadia irá se deparar com suas reminiscências e medos, distante das consentidas impossibilidades de Antigamente, e será o elo entre as duas travessias que se unem com a imagem de Nossa Senhora e a necessidade de desvendar as sombras.
“Receio de que os seus já não lhe pertencessem, e que a velha casa estivesse morta.”
Todos os personagens são riquíssimos, construções preciosas do início de processo de colonização e da sociedade de Moçambique em 2002, independente desde 1975. A relação entre os portugueses, os indianos e os negros é revelada nas travessias, as etnias são marcadas, como os rios que deságuam num oceano que, sem margens à vista, é como uma náu à beira do abismo descrita pelo autor.
A chegada dos estrangeiros (afro-americanos) é aguardada com ansiedade, representa uma fonte de renda para a desolada cidade entregue ao passado. A comunidade encontra-se para forjar uma memória sobre a escravidão, já relegada ao esquecimento (é necessário esquecer para sobreviver) até pelas contradições que traz em sua própria constituição, como a captura e venda de escravos realizada pelos próprios negros. Como o escravo Xilundo que foi vendido pelo próprio pai Baba Inhamoyo, proprietário e negociantes de escravos: “No processo de ser escravo ele aprenderia a escravizar os outros.”
Os afro-americanos também precisam forjar uma presença para garantirem a sobrevivência com contas superfaturadas para ONGS que alimentam a pobreza e a autocomiseração de povos rendidos à caridade.
A lucidez das falas do barbeiro Arcanjo Mistura, guardião do espírito revolucionário, condenado a guardar seu idealismo numa fortaleza sem muros, contrapõe-se com a visão do empresário Casuarino, com a passividade do negro Zeca Matambira, funcionário do desativado correio, que teve de abandonar a carreira de boxeador porque não conseguia bater em brancos ou mulatos, e com a morte em vida do goês Jesustino Rodrigues que de tempos em tempos troca de nome em busca de identidade.
As alienações e os esquecimentos são lidos nas palavras que secaram em Zero Madzero ou na canoa que se liberta da margem do tempo e ganha o rio na lucidez ou no delírio de Mwadia. Nos retratos da sociedade que se erguem na parede dos ausentes no interior da alma da protagonista.
Mia Coutro traz à tona a origem poética da língua portuguesa, a beleza e o alcance das metáforas bem empregadas, a reflexão da história que corre como uma rio rumo aos oceanos e a necessidade de reconstruir os pés que representem a realidade das sociedades.
O final do romance é excepcional. Dá ao leitor a dimensão ampliada de tudo o que lera nos capítulos anteriores. Versos são extraídos da prosa e são vestígios para a conclusão. Um toque de mestre que transforma o livro numa canoa que no dizer da protagonista Mwadia é o que faltava em sua vida.
“Um livro é uma canoa. Este era o barco que lhe faltava em Antigamente. Tivesse livros e ela faria a travessia para o outro lado do mundo, para o outro lado de si mesma.”
A imagem de Nossa Senhora, ou Nzuzu, ou Kianda, desliza nos cursos das travessias. Seus pés são Mwadia que une e sustenta a travessia dos sonhos e histórias. Existem crenças que não precisam de alicerces em solo firme, são como água, ar, vento e se equilibram no ventre das palavras e dos silêncios. Quando expostas ao mundo trazem à tona o brilho das pequenas estrelas que precisam de um firmamento próprio para crescerem e iluminarem realidades.
“A viagem termina quando encerramos as nossas fronteiras interiores, Regressamos a nós mesmos, não a um lugar.”
Helena Sut
Publicado no Recanto das Letras em 23/06/2006
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